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Fisco vai "analisar" o quê? Revolut não é conta de depósitos. Por lei, não tem de ser declarada no IRS

Autoridade Tributária lançou o alarme. Especialistas recomendaram cautela. Depois, o Secretário de Estado disse que ia analisar. Afinal, o Revolut tem ou não de estar no IRS? E o N26 ou o Paypal?

Cronologia de uma grande confusão (que ainda não tem fim à vista). A Autoridade Tributária lançou o alarme, na noite de quarta-feira, dizendo ao Diário de Notícias que “a existência de conta no Revolut deverá ser declarada” no IRS. Alguns especialistas recomendaram que se levasse o aviso a sério, incluindo vários, ouvidos pelo Observador e por outros jornais, que defenderam na quinta-feira que, por via das dúvidas, o melhor mesmo era comunicar o IBAN ao fisco — mesmo que isso implicasse corrigir declarações já enviadas. Já na manhã de sexta-feira, em declarações ao Eco (e, mais tarde, num comunicado às redações), a secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais pediu tempo para “analisar” a matéria. Afinal, o Revolut e o N26 têm ou não de ser comunicados num anexo do IRS? A lei diz que, pelo menos no caso do Revolut, definitivamente não.

Segundo a nota enviada pela Autoridade Tributária na sexta-feira, o organismo “encontra-se a analisar a questão concreta do Revolut e de outras plataformas similares, de forma a esclarecer os contribuintes se os montantes que transferiram devem ou não ser declarados”. Nesse mesmo dia, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, disse ao jornal Eco que os contribuintes com contas no Revolut ou outros serviços digitais, como o N26, deveriam esperar mais alguns dias até que fosse prestado um “esclarecimento cabal” — recuando, portanto, em relação à clareza com que a posição transmitida pelas Finanças, ao Diário de Notícias, tinha sido transmitida.

Mas, então, o que é que a Autoridade Tributária tem para “analisar”? O Observador falou com mais alguns especialistas nesta matéria e, na opinião de Bernardo Correia Barradas, advogado e consultor do Banco Mundial (no grupo de desenvolvimento dos sistemas de pagamento), esse “esclarecimento” é perfeitamente “desnecessário”, por uma razão simples: as ditas contas no Revolut não são contas de depósitos (ou de títulos) numa instituição de crédito mas, sim, contas de pagamento ou moeda eletrónica — e para esses a lei não prevê qualquer declaração às Finanças.

“Não existe qualquer vazio legal ou regulamentar no que toca ao Revolut ou às contas que os portugueses tenham com essa instituição, ou instituições similares”, afirma o advogado, acrescentando que “esta matéria encontra-se devidamente tratada na legislação portuguesa desde outubro de 2009, ou seja, há quase uma década…“.

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Contactada pelo Observador, fonte oficial do Ministério das Finanças não fez comentários.

O que é que diz a lei?

O que prevê a lei, no artigo 63-A, n.º 8, da Lei Geral Tributária, é que “os sujeitos passivos do IRS são obrigados a mencionar na correspondente declaração de rendimentos a existência e a identificação de contas de depósitos ou de títulos abertas em instituição financeira não residente em território português ou em sucursal localizada fora do território português de instituição financeira residente de que sejam titulares, beneficiários ou que estejam autorizados a movimentar”.

Ora, o Revolut não é uma instituição bancária ou de crédito que recolhe depósitos (nem é repositório de títulos, como ações ou obrigações). Como diz Bernardo Correia Barradas, o Revolut e similares estão reguladas em Portugal desde 2009, pelo regime jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica. Este regime foi recentemente revisto pela bem conhecida nova Diretiva dos Serviços de Pagamentos, conhecida pela sigla anglo-saxónica PSD2.

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A Revolut é, nos termos deste regime, (não um banco, mas sim) uma instituição de moeda eletrónica, neste caso uma instituição com sede num outro Estado-membro da União Europeia e autorizada a exercer serviços de pagamentos em Portugal. Tanto a Revolut Ltd. (Reino Unido) como a Revolut Payments UAB (na Lituânia) estão registadas no Banco de Portugal como entidades de moeda eletrónica.

O que é o Revolut?

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O Revolut é uma empresa de tecnologia financeira fundada há quatro anos e que é vista como a “Amazon dos bancos”, por querer revolucionar o sistema financeiro da mesma forma que a Amazon revolucionou o retalho, atingiu já quatro milhões de utilizadores em todo o mundo, apenas três meses depois de chegar aos três milhões. Em Portugal, já existem mais de 130 mil pessoas a usar a “app” que começou por ganhar popularidade entre as pessoas que viajam muito, já que é possível converter moedas sem custos e fazer levantamentos em caixas automáticas no estrangeiro, também sem custos (até um limite, na versão gratuita).

 

Como reforça Rodrigo Rabeca Domingues, diretor do departamento de Financial Services Tax na consultora PwC, “do ponto de vista jurídico, as instituições de moeda eletrónica não podem receber depósitos ou outros fundos reembolsáveis. Quando eu transfiro para a conta Revolut, o que eu estou a fazer é transferir moeda escritural. O que estas entidades fazem é receber moeda escritural [a moeda que temos nas nossas contas bancárias] e, depois, ‘trocam-na’ por moeda eletrónica”.

“Todo o regime jurídico das contas de moeda eletrónica, como as do Revolut, fala em contas de pagamentos, nunca em contas de depósito ou de títulos”, acrescenta o especialista, notando que “receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicar por conta própria mediante a concessão de crédito é uma atividade exclusiva das instituições de crédito (artigo 8. do Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras), e apenas estas entidades (bancos), podem receber depósitos”.

Se, como se lê na legislação que rege os serviços de pagamentos, “as instituições de pagamento não podem receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis na aceção do RGICSF”, que sentido faz obrigar os contribuintes a declarar estas contas na declaração de IRS? Na opinião destes dois especialistas, não faz sentido nenhum. Quando colocamos dinheiro na conta Revolut, “não estamos a fazer um depósito, de todo. Até porque não está garantido pelo Fundo de Garantia de Depósitos ou equivalente (no caso do Reino Unido, o Financial Services Compensation Scheme)”, lembra. Apenas estamos a colocar nas mãos de outrem dinheiro que, depois, no caso do Revolut, podemos converter entre várias divisas e, também, fazer levantamentos no estrangeiro.

E, sendo o tema em apreço a declaração anual de rendimentos (e não de património, por exemplo), há um fator que é crucial: “o facto de esta conta não ser suscetível de gerar rendimentos sujeitos a IRS não deve ser despicienda — podendo assim, no mínimo, discutir-se o interesse de uma autoridade tributária em ser informada de uma conta que não é suscetível de gerar rendimentos sujeitos a IRS”, como seriam juros de depósitos, dividendos de ações ou juros de cupão de obrigações (títulos de dívida) de empresas ou estados.

“O legislador, quando legislou no sentido de obrigar a que as contas de depósitos ou títulos fossem comunicadas, fê-lo com o propósito de conhecer as instituições financeiras localizadas fora de Portugal onde podiam estar a ser gerados rendimentos que teriam de ser tributados”, acrescenta Rodrigo Rabeca Domingues. E o facto de ter um número IBAN, por sinal um elemento importante da reflexão da Autoridade Tributária? Para Bernardo Correia Barradas, essa é uma questão “absolutamente irrelevante”.

“O importante é que os contribuintes não sejam prejudicados com algo que não estavam à espera e que a própria administração tributária nesta fase terá que verificar. Quem já entregou deve também aguardar sem nenhuma preocupação. Os que ainda não entregaram, justifica-se esperar um esclarecimento cabal da Autoridade Tributária”, disse o secretário de Estado António Mendonça Mendes, ao Eco, na sexta-feira.

O especialista sublinha que as suas conclusões são apenas a sua interpretação da legislação em vigor e não sua “opinião sobre a utilidade, ou mesmo necessidade, de se alterar a lei e alargar a obrigação declarativa aí prevista”. E o legislador poderia fazer isso “facilmente — com uma alteração cirúrgica ao n.º 8 do artigo 63-A da LGT bastaria, bastando acrescentar a expressão ‘contas de pagamento'” à legislação onde, recorde-se, apenas se referem as contas de depósitos ou de títulos.

Sebastião Lancastre, CEO da Easypay, tem uma opinião exatamente igual: “para mim, isto ou é preto ou é branco — não é cinzento — o Revolut não é uma conta de depósitos nem de títulos, como também não são as contas na Easypay”. “Estamos a inventar uma obrigação” que o contribuinte não tem, porque “na prática, eu não posso comprar títulos, não posso fazer um depósito a prazo — não tenho o rendimento da conta. Aquilo é uma conta de pagamentos — é uma conta onde só se carrega e, depois, se gasta”, ironiza o empreendedor na área da fintech, lembrando que “o dinheiro que sai para o Revolut já sai da minha conta bancária normal, porque é que o fisco também quer que eu declare [o Revolut]?”

“Temos de separar o trigo do joio. O fisco aqui podia ter dois interesses possíveis — avaliar se a pessoa tem rendimentos que não está a declarar e, por outro lado, no caso de uma execução fiscal, saber que contas existem para se ir buscar alguma coisa”, explica Sebastião Lancastre. “Mas também não me vai buscar nada a uma conta de pagamentos, portanto essa declaração no IRS não serve para nada — nem serve para ir buscar fundos no caso de uma execução nem serve para ir tributar rendimentos porque aquilo não dá rendimento nenhum”, acrescenta.

“Se eu não declaro o meu porta moedas, porque tenho de declarar a minha conta Revolut?”, pergunta Sebastião Lancastre.

"Se eu não declaro o meu porta moedas, porque tenho de declarar a minha conta Revolut?"
Sebastião Lancastre, CEO da Easypay

Sendo assim, qual é a dúvida da Autoridade Tributária?

Diogo Mafra, advogado da CMS Rui Pena & Arnaut (que já tinha falado ao Observador a propósito do artigo escrito na quinta-feira), concorda com esta análise mas, num esforço de compreensão daquilo que será o entendimento da Autoridade Tributária, reitera que o que pode estar em causa é um possível “entendimento” de que as contas Revolut se aproximam, “em termos práticos”, de uma conta de depósitos.

Porquê? “Desde logo porque, como o Banco de Portugal indica, as características de uma conta base (conta de depósito à ordem padronizada) é reunirem os seguintes serviços (i) abertura e manutenção de uma conta de depósito à ordem; (ii) disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta; (iii) acesso à movimentação da conta através de caixas automáticos, do serviço de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; e (iv) realização de depósitos, levantamentos, pagamentos de bens e serviços, débitos diretos e transferências intrabancárias nacionais”.

Ora, “com a exceção da diferenciação (relevante do ponto de vista legal e regulatório) de a conta não ser de depósito, mas sim de pré-pagamento, e de não existirem balcões da Revolut (que, repita-se, não é uma instituição de crédito), de um ponto de vista da utilização prática do serviço, qualquer dos serviços elencados são prestados pela Revolut e acessíveis neste momento a 130 mil clientes portugueses”, acrescenta Diogo Mafra.

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Ou seja, sabendo que o “raciocínio por detrás da obrigação de declaração de contas no estrangeiro é de assegurar a transparência de fluxo de fundos, prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo e combate à evasão fiscal, da perspetiva da Autoridade Tributária, a distinção regulatória do tipo de conta não terá um impacto relevante sendo, para efeitos da autoridade tributária, perfeitamente equiparáveis”.

O N26 é a mesma coisa? E o Paypal, também tem de ir ao IRS?

Em contraste com o Revolut, que está registado como instituição de moeda eletrónica, o N26 tem um estatuto diferente: está registado no Banco de Portugal como instituição de crédito com sede num país da UE (Alemanha). Por isso, como referem os advogados da CCA Law Firm, “estando perante uma instituição de crédito, deverá considerar-se, à partida, que as contas abertas junto da N26 são verdadeiros depósitos”, na aceção do regime — por isso, na opinião da CCA, é “necessário fazer menção [da conta N26] na declaração de IRS, por parte do contribuinte titular da conta”.

Já no caso do Paypal, outro serviço (bem mais antigo do que o N26 ou o Revolut) que muitos portugueses usam, aplica-se o mesmo raciocínio do Revolut, embora com algumas diferenças. Os termos e condições do Paypal deixam bem claro que este é um “serviço limitado a dinheiro eletrónico, não se qualificando como um depósito ou um investimento”. Não existe, por isso, qualquer proteção por qualquer regime de proteção de poupanças. A documentação legal é claro quando diz que o “PayPal permite que o utilizador faça pagamentos a terceiros e aceite pagamentos de terceiros”. Apenas isto.

Pedro Simões de Oliveira, da CCA Law Firm, diz que “o caso Paypal é interessante, porque tem uma licença bancária na Europa (registada no Luxemburgo). No entanto, pelo menos se nos reportarmos à realidade portuguesa, essa licença bancária não é usada, isto é, os serviços que são prestados são apenas de pagamentos, embora esteja registado no Banco de Portugal como instituição de crédito (contrastando com o Revolut, que é de moeda eletrónica)”. Por outras palavras, “para já, não faz sentido” dizer que tem de se declarar o Paypal no IRS.

Voltando ao Revolut, porém, sendo certo que a conta não dá qualquer rendimento, pode originar mais-valias que faça sentido tributar? Ou seja, sendo as trocas de divisas (instantâneas e gratuitas) o principal trunfo do Revolut, o que acontece se eu uso euros para comprar libras e, no dia seguinte, a libra dispara 20% e eu volto a converter em euros? Essa mais-valia deve ser tributada?

“Claro que não”, diz Sebastião Lancastre, da Easypay — “isso é o mesmo que ir ao banco buscar notas de libras para uma viagem, pagar lá as comissõezinhas deles, e depois a libra subir 20% e eu voltar a ir buscar euros, ganhando qualquer coisa com isso. O fisco entende que isto é algo que deve ser tributado?”, questiona. Note-se que o Revolut passou a disponibilizar a negociação em criptomoedas, como a Bitcoin, onde as grandes flutuações de valor podem gerar elevadas mais-valias (ou menos-valias), mas a conta onde se negoceiam criptomoedas é, no Revolut, uma conta totalmente separada, com serviços distintos.

É neste contexto de heterogeneidade no mundo das tecnológicas financeiras (fintech), porém, que surge a reflexão dos poderes públicos, designadamente no que diz respeito a uma eventual alteração da legislação — como o secretário de estado dos assuntos fiscais admitiu, de resto, para o “futuro”. No “presente”, porém, o entendimento de Bernardo Correia Barradas é que “o que não pode, ou não deve, fazer o Estado é vir interpretar normas que o próprio Estado produziu, de uma forma que não tem correspondência no texto legal”. E, diz o advogado e consultor do Banco Mundial para a área dos pagamentos, muito menos “impondo ao contribuinte obrigações que a lei não prevê”.

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